De Coyhaique a Rio Tranquilo, uma estrada e muitas lições

N

osso novo amigo David havia nos deixado próximo à saída da cidade de Coyhaique e dali seguimos nossa jornada de 5 caronas até nossa próxima parada que seria em Puerto Rio Tranquilo. Mas confie em mim, a aventura das caronas não foi nada comparada a enorme lição de vida que tomamos no final do dia.

Na primeira das caronas fomos em uma caminhonete com um senhor argentino que tinha como hobby a pescaria e ia para um lago perto dali. Ele nos deixou num cruzamento mais a frente, mais ou menos 30 minutos da saída de Coyhaique.

O caminho até ali já tinha sido lindo e estávamos empolgados com a carretera. Fomos caminhando e um pouco mais a frente já demos de cara com uma grande cascata do lado da rodovia, ficamos boquiabertos. Realmente seriam paisagens de tirar o fôlego as que iríamos encontrar na famosa Carretera Austral. Agora estávamos em um lugar com montanhas e muito verde, sem o vento que nos perseguiu em outras partes da Patagônia. As cascatas e os lagos apareciam sempre majestosos e havia uma nova surpresa a cada curva. Realmente uma estrada que vale a pena.

Carretera Austral - Cachoeira na beira da estrada

Carretera Austral - Rolos de feno

Carretera Austral - Rios e muito verde

Carretera Austral - Montanhas coloridas

Caminhamos cerca de um quilômetro, encontramos uma sombra agradável e resolvemos tentar nossa próxima carona. Depois de mais ou menos meia hora esperando parou uma van que fazia o trajeto de Coyhaique até o aeroporto de Balmaceda. O motorista nos deixou em um outro cruzamento mais a frente que se dividia entre o caminho para o aeroporto e o caminho para a povoado de Villa Cerro Castillo.

Como nesse cruzamento tínhamos um ponto de ônibus que nos servia de abrigo resolvemos não caminhar e ficamos esperando ali por mais ou menos uma hora até que parou nossa terceira carona. Outro senhor argentino com um motorhome lindo e equipadíssimo parou e com ele fomos até outro cruzamento mais a frente, próximo ao povoado. Conversamos muito sobre as maravilhas de viajar e o tempo passou voando.

Já havia passado das 16h e cogitamos a possibilidade de passarmos a noite em Villa Cerro Castillo mesmo. Nossa quarta carona foi com um morador dali que nos levou do cruzamento em que estávamos até o centro do povoado e nos deu algumas dicas sobre o lugar.

Fomos até um almacén (na tradução literal seria armazém, mas no Brasil não se usa muito, é o equivalente a uma mercearia bem pequena, muitas vezes a única opção nesses povoados menores) e compramos alguns mantimentos, mas era cedo e ainda não sabíamos bem se íamos passar a noite ali ou não. Passamos no pequeno centro de informações turísticas, conseguimos um mapa e algumas indicações e decidimos seguir viagem pois não queríamos pagar hospedagem e pensamos em acampar próximo à rodovia caso não conseguíssemos carona até o povoado seguinte, de Puerto Rio Tranquilo, nosso destino. Já tínhamos reparado que na carretera havia diversos bons pontos para acampar, sempre com água abundante e boa proteção do vento, além de nos sentirmos muito tranquilos com relação à segurança, então o plano era caminhar um pouco até nos afastarmos da cidade e montar a barraca.

Carretera Austral - Cuesta del Diablo

Carretera Austral - Campos verdes e Cerro Castillo ao fundo

Carretera Austral - Rio e mini praia

Carretera Austral - Rios límpidos

Carretera Austral

Carretera Austral - Rio com Cerro Castillo ao fundo

Caminhamos uns dois quilômetros e ainda não tínhamos achado um lugar ideal para acampar (exceto um que ficava muito próximo da cidade, então preferimos seguir). Durante esse trecho quase não passavam carros e vimos que apesar da nossa sorte nesse dia não seria fácil seguir a dedo em direção ao sul agora que já estávamos na baixa temporada. Mas naquele dia realmente estávamos com o dedo aguçado. Parou mais uma caminhonete com um casal muito simpático que ia até Villa O`Higgins, o último povoado ao sul da carretera.

O banco de trás estava cheio com suas bagagens (que não eram poucas) então nos restava a caçamba novamente, mas isso nunca foi problema pra nós e foi aí que subimos para a nossa quinta carona do dia. O trajeto todo até ali tinha sido muito bonito e nessa última carona não foi diferente, mas nesse pedaço ainda tínhamos o plus de em cada vista bonita darmos uma paradinha para tirar algumas fotos. Alejandro, o motorista, sempre olhava pelo espelho pra ver se eu já tinha terminado as minhas captações antes de seguir, simplesmente perfeito.

No meio do caminho um ciclista que vinha no sentido contrário fez sinal para que a caminhonete parasse e encostamos para falar com ele. Num espanhol enrolado o ciclista pediu educadamente um cigarro. Sim, um cigarro! O sotaque era conhecido e a bandeira que estava em cima do alforge não negou, era brasileiro. Era um gaúcho de Porto Alegre e ficou muito contente (assim como nós) de ter encontrado outros brasileiros tão longe de casa. Alejandro deu de presente a ele uma carteira cheia e ele ficou com um sorriso de orelha a orelha.

Carretera Austral - Caminho até Puerto Rio Tranquilo

Carretera Austral - Lindo céu

Carretera Austral - Caminho até Puerto Rio Tranquilo 2

Carretera Austral - Caminho até Puerto Rio Tranquilo - Cachoeira na beira da estrada

Carretera Austral - Caminho até Puerto Rio Tranquilo - Ciclista Gaúcho

Já era noite quando chegamos em Puerto Rio Tranquilo e quando paramos eles perguntaram se tínhamos certeza se não queríamos seguir com eles até Cochrane naquele dia, pois eles dormiriam lá. Eu e Bruna já tínhamos cogitado isso, mas de noite na caçamba já fazia um pouco de frio, além de perdermos a paisagem por já estar escuro, então decidimos ficar. Antes de nos despedirmos eles ainda nos falaram que tinham uma casa em Chiloé e que quando passássemos por lá era pra gente entrar em contato e checar se eles já haviam voltado. Caso sim, tínhamos estadia garantida.

No posto de gasolina onde ficamos já pedimos informações sobre algum camping por perto e nos indicaram um que ficava cerca de 5 quadras dali. O caminho era meio complicado, seguimos as instruções, mas acabamos num terreno baldio no final de uma rua onde achamos que tínhamos errado o caminho. Avistei um rapaz mais a frente e fui até ele perguntar se estávamos no lugar certo.

O rapaz era Jonatan, ele nos disse que estávamos no caminho certo sim, mas que não precisávamos ir até lá, afinal o camping era pago e justamente nesse quase final de rua havia uma pequena trilha com um lugar ideal para acampar onde não precisaríamos pagar nada e seria bem tranquilo. Agradecemos a dica e como estávamos com pouca água para cozinhar pedi a ele onde poderia encher nossas garrafas, ele disse para acompanhá-lo até sua casa ao lado e depois nos guiou até o lugar onde iríamos acampar.

Agradecemos e Jonatan voltou até sua casa, mas pouco tempo depois, nem bem havíamos tirado as coisas pra começar a armar a barraca, ele voltou dizendo em espanhol mais ou menos isso: “olá de novo, desculpa incomodar, mas queria fazer um convite pra vocês jantarem com a gente”. Nós estávamos com fome e o convite caiu como uma luva.

Quando entramos na pequena casa vimos sua mãe, Nieves, que já estava preparando os pratos pra gente e nos mostrou a mesa para nos acomodarmos. Sentamos e ela nos serviu um prato com um ensopado delicioso, acompanhado de alguns pães, salada e alguns condimentos para colocarmos a nosso gosto. A TV estava ligada em um noticiário e conversamos sobre diversos assuntos enquanto comíamos. Os dois eram pessoas muito simples mesmo e estavam visivelmente felizes em nos ter ali. A casa era bem pequena e ali viviam os dois e mais um dos netos de Nieves (sobrinho de Jonatan).

Depois de comermos eu tive que insistir para lavar a louça porque Nieves disse que não precisava. Enquanto nos preparávamos para sair ela nos ofereceu um dos quartos para ficarmos e disse que deveríamos ficar ali, mas nós realmente não queríamos causar nenhum incômodo e decidimos dormir na barraca. Então ela nos disse que tudo bem, mas que para compensar deveríamos tomar o café da manhã com eles no outro dia. Aceitamos o trato e fomos terminar de montar a barraca.

Quando eu e Bruna deitamos começamos a conversar sobre o que tinha acontecido e o quão especial era aquilo. Eu estava muito emocionado, chorei quando percebi que mesmo tendo tão pouco, eles estavam dispostos a compartilhar tudo. Parece clichê, eu sei, todo mundo diz que os que tem menos são os que mais compartilham, mas eu digo com toda a certeza do mundo, não é possível entender o real sentido disso a menos que você seja a pessoa a qual está sendo ajudada, a menos que você seja o necessitado. E naquele dia eu entendi. Naquele dia ao olhar para nós dois, dormindo na barraca em meio ao frio, eles sentiam que tinham tudo e nós, quase nada (por mais que nós soubéssemos que estávamos ali por uma escolha própria).

Muitas pessoas não tem o mesmo acesso a educação, cultura e diversas outras coisas que muitos de nós temos. Mas ainda assim, com todas essas dificuldades eles se mostram ricos em generosidade, amor e humildade. Eu e minha montanha de egos tomamos uma linda lição, ao julgar o que aconteceu pude ver que quem tinha muito a aprender não eram eles, e sim eu. Pude entender o real sentido da palavra valor e o quão distorcida ela está hoje em dia.

E ao entender tudo isso, mais uma vez me pus a repensar os valores pelos quais vivo. E sem querer parecer pretensioso, te aconselho a fazer o mesmo.

Puerto Rio Tranquilo - Nós, Nieves e Jonatan

Puerto Rio Tranquilo - Nós e Jonatan

Posts recomendados
Mostrando 4 comentários
  • Giovana
    Responder

    Lindo e emocionante!

  • Katia Eger
    Responder

    Olá queridos, hoje tive o privilégio de ter um tempinho para dar uma olhadinha nessa aventura de vocês e me emocionei novamente vendo tudo isso, tanta beleza, tanta bondade de pessoas que nem conhecem e que acolhem como se fossem da família…que lindo isso. Estou com muita saudade sabe…mas feliz por vocês estarem tão felizes e realizados. Grande abraço!!!!

    • Bruna de Moraes
      Responder

      Katia! Obrigada por estar acompanhando. É lindo ver que existe bondade nesse mundo, com certeza a viagem está fazendo a gente acreditar mais nas pessoas. Também estamos com muita saudade, mas logo estamos de volta. Beijos

  • Pedro
    Responder

    Certa vez dei carona para um funcionário meu lotado em obras, quando de lá voltava. Deus sempre me cercou só de companheiros solidários e amigos e me fez um engenheiro determinado, discreto e sóbrio. Alguns dias depois voltei à obra e lá escutei algo amigo e até irreverente. O encarregado da obra me reportou o diálogo que escutou em que o companheiro perguntava ao outro se eu corria muito na estrada, ao que o caroneiro respondeu; “cara, eu acho que tem hora que o homem até pára”…:)

Deixe um comentário

Contato

Deixe sua mensagem aqui, te responderemos assim que pudermos. :)

Not readable? Change text. captcha txt
Coyhaique - Michael, Robert, Bruna e David prontos para a jantaPuerto Rio Tranquilo - Navegação Cavernas de Mármore 08