A aventura na estrada que nos levou a uma nova Patagônia

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osso planejamento terminava em El Chaltén, ou seja, quando saímos do Brasil só tínhamos estudado o caminho das cidades desde Ushuaia até ali, daí pra frente iríamos descobrir enquanto estivéssemos viajando. Muitas pessoas nos deram dicas de onde passar durante a viagem e quando saímos da cidade isso era tudo o que tínhamos, mas não imaginávamos que a Patagônia ainda nos reservava uma grande aventura.

Como já falamos, Chaltén é uma cidade bem pequena e estávamos em um camping próximo da saída da cidade, então acordamos, tomamos um café reforçado, arrumamos as mochilas e fomos até lá. Já deixamos separadas algumas comidas prontas (biscoitos, pão e barras de cereal) em um local de fácil acesso, pois sabíamos que era uma rota de pouco movimento, então poderíamos ficar ali por muito tempo.

El Chaltén - Bruna pedindo carona na saída da cidade

Caminho entre Chaltén e Três Lagos - Pôr do sol na beira da estrada

Da saída da cidade até o cruzamento da Ruta 40 esperamos por mais ou menos 3 horas, o que não é pouco, mas também não é desesperador. Fomos na caçamba de uma caminhonete de um casal de argentinos que já tinha pegado outros 3 mochileiros que estavam pedindo carona um pouco a frente de onde estávamos, ou seja, eram os dois e mais 5 caroneiros agora. O trajeto de aproximadamente uma hora e meia foi tranquilo e nos animou bastante, mesmo com o vento gelado que encarávamos na parte de cima do carro.

Chegando no cruzamento, eles seguiram para a direita, em direção a El Calafate e nós fomos para o outro lado da Ruta 40 que nos levava para o norte. Ventava muito então fomos buscar um pouco de abrigo atrás de uma placa da rodovia que nos dava as distâncias até os próximos povoados. Nos deparamos com algumas mensagens não muito animadoras riscadas com pedras ou canetões na parte de trás da placa: “não passa ninguém!”, “cadê os carros?”, “vamos morrer aqui!”, “não há água”, mas estavam acompanhadas também de muitas que diziam “sorte, mochileiro”!

Esperamos, esperamos e esperamos. Haviam pouquíssimos carros e mais ou menos 8 em cada 10 entrava sentido Chaltén e não nos servia. Fizemos uma média rápida que nos deixou com mais ou menos um carro a cada 45 minutos. Isso mesmo, um automóvel a cada quase uma hora. Nessa hora, apesar de todo o otimismo das boas experiências com as caronas aqui na Argentina e no Chile, ficamos bem preocupados.

As horas passavam, os pouquíssimos carros passavam e nos deixavam ali, desanimados e cansados. Foi quando apareceram os também mochileiros Laura, Leo e Steve pra levantar o ânimo. Leo tínhamos conhecido na casa do Santi em Puerto Natales e Laura e Steve encontramos junto com ele na trilha para a Laguna de Los Tres alguns dias atrás. Eles também iam para o norte, ou seja, apesar de agora termos novos companheiros para conversar, a possibilidade de carona relativamente diminuía.

Mais horas se foram e nesse meio tempo chegaram outras 3 pessoas, um casal de um peruano e uma italiana e um norte americano maluco que tinha uma mochila muito pequena com apenas algumas roupas, não tinha barraca ou saco de dormir, o que naquelas circunstâncias era muito arriscado. Enfim, agora éramos 8 pessoas, numa rodovia que quase não passava ninguém e a noite estava chegando. O vento não tinha diminuído então armar a barraca num lugar como esse, sem proteção, não seria algo fácil. Haviam dois “túneis” para escoamento de água nas laterais da estrada, não eram uma mansão, mas eram suficientemente grandes para nos abrigar deitados com os sacos de dormir, seria um bom abrigo.

Eu já estava preparado psicologicamente para fazer isso, era uma das coisas mais extremas que tínhamos feito na viagem, era uma condição muito ruim, mas eu estava me acostumando com a ideia. Eis que depois de mais ou menos umas 5 horas e meia esperando um carro parou, eu quase que não podia acreditar. Era um carro pequeno e Leo foi falar com o motorista que no final de tudo, se mostrou um grande pé no saco. Ele falou que não ia nos dar carona, ficava nos cortando enquanto falávamos e só queria meio que fazer propaganda de uma linha de ônibus que passaria por ali mais tarde da qual ele seria o motorista a partir da próxima parada. Leo tentou argumentar e pedir para que só levasse um de nós até um posto de gasolina que ficava a 30 quilômetros ou qualquer coisa do tipo, naquele ponto qualquer coisa servia. Ele retrucou com um “quanto me pagas por esto?”, nessa hora eu dei as costas e vi que não ia dar em nada.

O valor do ônibus era AR$ 700,00 (cerca de R$ 160,00 que certamente iria para o próprio motorista) e ele pediu AR$ 100,00 para levar um de nós até o posto de gasolina, era nítido que queria aproveitar-se da nossa situação. Nenhum de nós, exceto o norte americano que não tinha como dormir ali, estava disposto a gastar tudo isso, era muita grana. Então novamente voltamos a estaca zero.

Mais tempo se passou e nada. Já eram 21:30h, a noite tinha chegado e eu estava prestes a começar a arrumar as coisas para cozinhar algo e ir dormir. O ônibus passaria por ali mais ou menos 22:00h e Leo estava seguro que iria convence-lo a nos levar até o posto de gasolina, então esperamos um pouco mais. Nesse meio tempo passou uma caminhonete com apenas um casal dentro, fizemos sinal com as lanternas, pulamos, esperneamos e nada, passou direto. Mas nessa hora nossa sorte mudou, lá no fundo, no horizonte eu vi a mesma caminhonete fazer a volta.

O motorista chegou e perguntou: “o que estão fazendo todos vocês, aqui a essa hora?”, Leo (que era argentino, então se tornou nosso porta-voz) começou a explicar tudo, que estávamos ali desde sempre e que ninguém havia parado e quase implorando dizia para nos levar até o posto de gasolina. O senhor aceitou e começamos a nos empilhar em cima da caminhonete com todas as mochilas, o que não era uma tarefa nada fácil, afinal éramos 8 e com mochilas bem avantajadas. Nesse meio tempo surgiu outro farol no horizonte (contrariando totalmente nossa média até então) e o motorista pegou uma das lanternas e foi na beira da estrada pedir para que parasse também. Acabou que era um conhecido dele e tinha lugar para mais duas pessoas no seu carro. Definitivamente nossa sorte tinha mudado.

Os dois carros nos levaram até o posto de gasolina e lá baixamos todos, menos o norte americano que foi com um dos carros até o próximo povoado para procurar um lugar para ficar pela noite. Estávamos muito contentes, tínhamos um lugar abrigado para dormir, água (que era nosso maior problema, pois tínhamos pouco então cozinhar na estrada seria complicado) e até banheiros! Conversamos com a senhora que estava no caixa e ela se mostrou muito solícita, disse que podíamos armar as barracas ao lado a construção sem problemas.

El Chaltén até o cruzamento

Mensagens não tão agradáveis

Nós e a Ruta 40

Juntamos o que tínhamos de comida, fizemos uma janta comunitária e fomos dormir. No outro dia fomos caminhando até o próximo povoado que ficava a 3 quilômetros dali. Chegando lá fomos primeiro a uma padaria e Laura educadamente pediu pra atendente se tinha algum pão ou algo que não poderia vender mais, de ontem ou coisa do tipo e ela gentilmente nos forneceu o que seria nosso café da manhã. Depois passamos em um mercadinho para comprar um pacote de macarrão e outro de polenta, as duas coisas mais baratas que havia lá, muitas vezes encaramos a redução de custos a sério.

E novamente nos dirigimos para a saída da cidade e recomeçamos nossa batalha, agora com 7 pessoas. E a história se repetiu, pouquíssimos carros e ninguém parava. Depois de muitas horas novamente, estávamos todos ficando de saco cheio de tanto esperar. Leo e Steve foram os primeiros a mudar os planos, decidiram ir para a outra saída do povoado (por onde entramos), voltar para Calafate e fazer um contorno gigante pela Ruta 3, que fica do outro lado do país, mas é muito mais movimentada. Mais ou menos uma hora depois passaram por nós em uma caminhonete gritando “Ruta 3! Ruta 3″! Parecia que o plano havia funcionado.

Mais um tempo se passou e chegou um carro com um casal que conhecia o peruano e a italiana que estavam pedindo carona conosco. Só havia espaço para os dois e eles se foram, ficamos todos muito felizes afinal dos 7 agora só restavam 3, aumentando nossas chances, além de toda a alegria compartilhada por nossos companheiros já estarem seguindo viagem.

Ficamos na beira da estrada por mais um tempo até decidirmos que iríamos aceitar qualquer coisa, estaríamos dispostos a cancelar nossa subida pela Ruta 40 e ir para a Ruta 3 como haviam feito Leo e Steve. Depois de mais algum tempo parou uma caminhonete e nos disse que ia pra lá, já estávamos ali há 5 horas, então é claro que topamos na hora.

Mais ou menos 3 horas depois havíamos cruzado toda a Argentina e estávamos em Piedra Buena na beira da Ruta 3. Aqui sim, todo o azar da Ruta 40 desapareceu, nem bem colocamos as mochilas no chão e uma outra caminhonete parou. Tinha lugar para nós três e era dirigida pelo argentino Andres. Confirmamos se ele ia para o norte e partimos.

Começamos a conversar, explicamos de toda a viagem, pra onde íamos e tudo mais. Ele morava em Puerto Deseado, uma cidade que fica à direita da Ruta 3, meio fora de mão para nós, mas ele poderia nos deixar em Puerto San Julián, uma cidade antes. Ele nos disse também que tinha uma fazenda que ficava entre Deseado e San Julián que era pra onde estava indo agora e como já estava bem tarde não queria nos deixar sem lugar pra ficar em San Julián então nos convidou para irmos até a fazenda com ele, poderíamos dormir lá e no outro dia ele nos levaria até Puerto Deseado. Por alguns momentos nos olhamos e ficamos pensando se tínhamos mesmo entendido bem o que acabamos de ouvir.

Depois de dois dias extremamente cansativos na beira da estrada esse convite foi simplesmente a melhor coisa que poderia ter acontecido. Nem conseguíamos acreditar, em um momento estávamos dormindo na beira da estrada e pedindo por caronas que não paravam nunca e no outro tínhamos já tínhamos subido bastante ao norte e tínhamos a possibilidade de uma cama e um banho quente, tudo isso sem pagar um centavo sequer, isso era simplesmente inimaginável.

Chegamos na fazenda de Andres, já era muito tarde, quase meia noite, fizemos uma janta rápida e todos despencamos na cama (cama de verdade!), estávamos muito cansados. No outro dia acordamos e a mesa do café estava posta com um bilhete dele dizendo que retornaria mais tarde. Tomamos o café com um sorriso de orelha a orelha e quando saí da casa me deparei com um dia lindo e uma vista sensacional, um campo sem fim, em uma paisagem desértica totalmente diferente das montanhas que estávamos acostumados a ver. Enquanto eu caminhava um pouco ao redor da casa um dos peões da fazenda passou por mim, me cumprimentou e disse que estava começando a preparar um cordeiro “al asador” que é o tradicional cordeiro patagônico assado em fogo de chão. Andres tinha comentado no dia anterior que mesmo sendo vegetarianos deveríamos prová-lo, pois era sensacional.

Quando iniciamos a viagem já tínhamos conversado sobre isso, que seria bem possível que abríssemos algumas exceções e comêssemos carne em algumas situações específicas como quando se tratasse de um prato típico, ou quando quem nos estivesse recebendo talvez fosse se sentir mal pela recusa da carne ou até mesmo se estivéssemos sem muita opção para manter o nível de proteína adequado pelo fato de termos algumas comidas muito caras aqui (que era o nosso caso agora, pois passamos os últimos dias nos alimentando muito mal na estrada). Já tínhamos comido a centolla, que é um caranguejo gigante, típico de Ushuaia, já tínhamos comido atum em um dos dias de trilha pois não tínhamos outra coisa, já tínhamos experimentado o choripan (um pão com linguicinha e condimentos) na casa de Gabi. Enfim, não seria a primeira vez, mas de alguma forma eu estava me sentindo diferente.

Sabíamos que era um animal que havia sido criado ali na fazenda, criado solto, morto pelas mãos dos peões e feito de uma maneira menos industrial. Era um presente de quem nos estava hospedando e um prato típico. Além de tudo isso era um prato que eu queria muito comer, quem me conhece sabe que gosto muito do sabor da carne e que apenas não a como pelo ideal, mas quando comemos fiquei com aquele pé atrás, como se estivesse fazendo algo errado. Estava delicioso, fato. Uma das melhores carnes que já provei e certamente uma das melhores refeições da viagem e além disso me fez refletir muito sobre o ideal do vegetarianismo. E ainda me confirmou a opinião de que quero me afastar o máximo possível de todas as comidas industrializadas, inclusive as que não são de origem animal.

Depois disso durante a tarde fomos ajudar Andres a desatolar um caminhão no meio de sua fazenda e a tarde toda passou voando. Acabou ficando tarde para irmos até Deseado, além disso não havíamos conseguido tirar o caminhão completamente, ainda faltava um pouco. Então retornamos a casa, preparamos uma janta novamente e dormimos mais uma noite em uma cama confortável. No outro dia acordamos e Andres já tinha saído para desatolar o que faltava do caminhão e Bruna começou a preparar as panquecas para o café da manhã. Nesse meio tempo Andres retornou e tomou café conosco.

Fizemos também um pequeno tour pela fazenda, conhecemos todo o processo de produção da lã e da carne que fazem ali, vimos vários objetos indígenas que Andres encontra pela fazenda como pontas de flechas, pedras lascadas e outras preparadas como bolas para serem usadas como boleadora. Depois do passeio nos despedimos de todos e partimos em direção a Puerto Deseado.

Chegando lá também fizemos um pequeno tour pela cidade, Andres nos mostrou os principais atrativos e nos pediu desculpas por não ter mais tempo para mostrar mais, como se ele precisasse pedir desculpas por algo. Depois nos deixou em frente a um supermercado porque necessitávamos encher novamente nossos estoques de comida para encarar a estrada novamente. Agradecemos muito por tudo e depois da nossa compra seguimos caminhando até a saída da cidade.

E lá estávamos nós novamente: eu, Bruna e Laura na beira de estrada chamando a atenção dos motoristas que passavam. Agora numa estrada muito mais movimentada, bem longe de onde imaginávamos anteriormente e com uma bagagem muito maior do que antes. E não, não estou falando das mochilas. Conhecemos uma nova Patagônia, a Patagônia da imensidão desértica e do acolhedor povo do campo. Nos desprendemos de toda a programação, ligamos o modo aleatório e ganhamos muito com isso, aproveitamos o inesperado e descobrimos coisas que nem imaginávamos conhecer durante a viagem. Definitivamente desapegar um pouco dos planos vale a pena.

Puerto Deseado - Laura na fazenda de Andres

Puerto Deseado - Fazenda de Andres

Puerto Deseado - Cordeiro patagônico na fazenda de Andres

Puerto Deseado - Cordeiro patagônico na fazenda de Andres 2

Puerto Deseado - Gato da fazenda

Puerto Deseado - Gato da fazenda 2

Puerto Deseado - Fazenda de Andres - Carrinho de mão

Puerto Deseado - Desencalhando o caminhão

Puerto Deseado - Pôr do sol na fazenda de Andres

Puerto Deseado - Fazenda de Andres 2

Puerto Deseado - Cordeiros na fazenda de Andres

Puerto Deseado - Fazenda de Andres 3

Puerto Deseado - Nós, Andres e Laura

Puerto Deseado - Despedida da fazenda de Andres

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Comentários
  • RODRIGO Dias
    Responder

    Parabéns Diego ! Estou acompanhando suas histórias daqui ! Esta foi a melhor até agora ! Muita coragem ! Boas lembranças !

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El Chaltén - Trilha para Laguna e Glaciar Piedras Blancas - Bruna e o glaciar ao fundoÀs vezes corremos!